A obrigação alimentar da pessoa idosa

ConJur

A obrigação alimentar sempre foi indiferente às idades de quem pede ou de quem paga, encontrando-se orientada pelo tradicional binômio necessidade (do credor) vs possibilidade (do devedor).

Uma das suas principais características é a reciprocidade: quem presta alimentos também poderá deles se socorrer quando necessitar. Quem é o devedor hoje pode ser o credor amanhã, invertendo-se os polos da relação obrigacional. Pelo teor dos artigos 1.696 e 1.697 do Código Civil de 2002, a instituição dos alimentos vincula reciprocamente ascendentes e descendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.

Em havendo pluralidade de devedores, a regra geral é a do artigo 1.698 (subsidiariedade e divisibilidade da obrigação), não possuindo a obrigação natureza solidária, de modo que apenas se o parente que dever alimentos em primeiro lugar não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; enquanto que se todos estiverem simultaneamente obrigados a prestar alimentos, devem concorrer na proporção dos respectivos recursos e, intentada ação contra apenas um deles, poderão os demais ser chamados a integrar a lide, em litisconsórcio passivo.

Se o credor de alimentos (não idoso) escolher somente um dos parentes e abdicar de propor a ação contra os demais coobrigados, vai se sujeitar ao risco de ver o seu crédito dividido proporcionalmente à capacidade de cada devedor. A integralidade da dívida não solidária, quando cobrada de um só, poderá ser reduzida, para que todos os diversos coobrigados respondam por sua parte.

A Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), no entanto, mudou essa realidade sempre que o credor for pessoa idosa [1], instituindo, no artigo 12 [2], a solidariedade passiva e facultando ao alimentando escolher entre os eventuais coobrigados aquele que, a seu critério, tiver as melhores condições econômicas de satisfazer a prestação, impedindo a intervenção de outros eventuais devedores de alimentos [3]. Trata-se de solidariedade imposta por lei, sendo certo que no ordenamento jurídico brasileiro a solidariedade jamais se presume (CC, artigo 265) [4].

É posição consolidada na doutrina e na jurisprudência ser “impertinente travar discussão acerca do ingresso dos demais devedores não escolhidos pelo credor idoso para figurarem no polo passivo, a fim de garantir prestação jurisdicional mais célere e sem delongas decorrentes da intervenção dos demais codevedores” [5]. Assim, se a pessoa idosa possui três filhos, não estará compelida a acionar todos simultaneamente podendo, desde logo, dirigir a pretensão contra um só deles, o qual, por sua vez, não poderá chamar os demais para integrar a lide. Essa opção é exclusiva do credor e não compromete a divisibilidade da obrigação. Tanto que o filho que foi demandado sozinho poderá exercer o direito de regresso, buscando o reembolso das cotas-partes dos demais coobrigados. Se um entre vários filhos foi o acionado, perquirirá dos irmãos o saldo da dívida, aplicando-se a regra geral do artigo 283 do CC [6], segundo a qual o co-devedor que sozinho paga a dívida, paga além da sua parte e por isso tem o direito de reaver dos outros coobrigados a quota correspondente de cada um. A solidariedade só existe na relação externa entre os devedores e o credor. Na relação interna, entre os devedores, a dívida será sempre pro rata.

Questão especialmente controvertida diz respeito à extensão da solidariedade em havendo coobrigados com graus de parentesco diversos. Já se decidiu que “a solidariedade deverá respeitar cada grau de parentesco e, ainda, haverá de ser observada a ordem sucessiva decorrente da proximidade do vínculo” [7]. Nessa senda, se existem filhos e netos, a ação deveria ser proposta primeiro contra os filhos, podendo o credor escolher qualquer um deles para direcionar a demanda, mas não poderia demandar, desde logo, um ou alguns dos netos, pois a solidariedade se aplicaria em graus sucessivos, primeiro aos filhos e depois aos netos. Em outras palavras, dever-se-ia demandar preferencialmente os descendentes mais próximos e, apenas se demonstrada a impossibilidade destes, poder-se-ia acionar os mais remotos, de modo a que fosse preservada a ordem sucessiva prevista nos artigos 1.696 e 1.697.

Penso, no entanto, não ser essa a melhor exegese do estatuto, pois mitigaria a eficácia da norma protetiva. A Lei Especial, nesse particular, prevalece sobre o Código Civil, afastando a regra geral da subsidiariedade, e possibilita ao credor alimentício idoso escolher litigar contra quaisquer dos prestadores disponíveis, independentemente do grau de parentesco [8]. Entretanto, nessa hipótese, se foi um neto o chamado a pagar sozinho, fará jus ao reembolso integral, sem nenhum abatimento, contra os filhos do alimentando, que seriam os parentes mais próximos em grau e os primeiros obrigados.

Havendo coobrigados legais e convencionais, a exemplo do doador de alimentos ou do ex-cônjuge que assume a obrigação em acordo de divórcio, incide a solidariedade sobre todos eles. Decidiu o TJ-MG que “gravada a obrigação alimentar debatida pelo instituto da solidariedade (art. 12, do Estatuto do Idoso), pode a alimentanda acionar o ex-cônjuge requerido pela integralidade do dever comentado, e remanesce ao alimentante a via regressiva em face dos demais parentes possivelmente coobrigados” [9].

O eventual abandono afetivo praticado pela pessoa idosa em relação aos descendentes não afasta, ipso facto, a obrigação alimentar destes [10].

A livre escolha, pelo idoso, do prestador a ser acionado para lhe prestar os alimentos, indistintamente entre filhos, netos, ex-cônjuges ou irmãos, afastando-se, em consequência, o litisconsórcio passivo facultativo dos devedores, constitui, segundo a doutrina, a mais relevante e impactante modificação legislativa advinda com o Estatuto do Idoso. A solidariedade da dívida proporciona uma tutela jurídica mais ágil ao idoso, cuja menor expectativa de vida e naturais fragilidades físicas e mentais, mais do que justificam a adoção de uma política afirmativa pelo legislador, de modo a concretizar o princípio da duração razoável do processo.

Por outro lado, e é uma crítica que se pode fazer ao texto legal, não tratou o Estatuto das situações em que a pessoa idosa é a devedora dos alimentos. Nas ações propostas pelos filhos contra os pais ou pelos netos contra os avós, nas quais a maior parte dos demandados são maiores de sessenta anos, o critério etário não recebeu qualquer regulação, em termos protetivos, pelo Estatuto do Idoso, permanecendo a obrigação alimentar dos avós submetida exclusivamente ao Código Civil e à Lei nº 5.478/68. A legislação especial só reconhece o benefício da solidariedade alimentar quando a pessoa idosa é a credora dos alimentos, mantendo-se a subsidiariedade no caso de inversão processual dos polos, de maneira que o neto está compelido por lei (CC, artigo 1.698) a acionar em primeiro lugar os pais e só depois os avós [11].

A pessoa idosa devedora de alimentos, nos casos de inadimplência, se submete à sanção da prisão civil, que deve, no entanto, ser aplicada cum grano salis, como já decidiu o STJ no HC 416.886-SP. Segundo o Tribunal da Cidadania, “havendo meios executivos mais adequados e igualmente eficazes para a satisfação da dívida alimentar dos avós, é admissível a conversão da execução para o rito da penhora e da expropriação, que, a um só tempo, respeita os princípios da menor onerosidade e da máxima utilidade da execução, sobretudo diante dos riscos causados pelo encarceramento de pessoas idosas que, além disso, previamente indicaram bem imóvel à penhora para a satisfação da dívida” [12].

A restrição de liberdade, quer seja sanção civil ou penal, não sofre a influência da idade do aprisionado, inexistindo entre nós previsão legal que isente completamente da pena a pessoa idosa. Todavia, surgem abalizadas vozes na doutrina em favor da abolição dessa medida de coerção. Para Guilherme Calmon e Juliene Terra, “sendo a obrigação alimentar dos avós excepcional, a imposição para forçá-los a cumprir a prestação deve ser diferente, sobretudo quanto ao emprego do rito destinado aos genitores que se furtaram da responsabilidade alimentar (…) Diferentemente, o encarceramento dos avós em situações de inadimplemento de pensão alimentícia dos netos deve ser repensado, inclusive com base nos pressupostos referentes à referida obrigação alimentar e nos direitos fundamentais da pessoa idosa. Por motivos razoáveis como, por exemplo, a dignidade do idoso, a idade avançada e saúde debilitada, a prisão civil deve ser abolida neste caso, como medida de lege ferenda” [13].

Por fim, não posso deixar de registrar que essas particularidades da obrigação alimentar da pessoa idosa é o tema da minha palestra no I Congresso Nacional da Pessoa Idosa — Perspectivas Existenciais e Materiais, promovido pelo IBDFAM e que será realizado em 25 de outubro próximo, por meio da plataforma Zoom. Inscrições no site: https://ibdfam.org.br/zoom/icongressoidoso/.


[1] O Estatuto do Idoso adotou os critérios da 1ª Assembleia Mundial do Envelhecimento da ONU (1982), que definiu como idosa a pessoa com 60 anos ou mais, nos países em desenvolvimento, e igual ou superior a 65 anos para os países desenvolvidos.

[2] Art. 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo a pessoa idosa optar entre os prestadores.

[3] AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ALIMENTOS. Verba alimentar reclamada pelo pai, idoso, em face de seus filhos. Chamamento ao processo da genitora do autor. Deferimento. Impossibilidade. Estatuto do Idoso, cumprindo política pública (art. 3º), que assegura celeridade no processo, impedindo a intervenção de outros eventuais devedores de alimentos. Solidariedade da obrigação alimentar devida ao idoso que lhe garante a opção entre os prestadores (art. 12). Eventual regresso em face de coobrigados. Precedentes. AGRAVO PROVIDO. (TJ-SP; AI 2085824-58.2021.8.26.0000; Ac. 14727710; São Paulo; 3ª Câmara de Direito Privado; rel. des. Donegá Morandini; Julg. 16/6/2021; DJESP 28/6/2021).

[4] Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes.

[5] TJ-SP; AI 2183919-94.2019.8.26.0000; DJESP 4/10/2019. |No STJ, a orientação é antiga: “A Lei 10.741/2003, atribuiu natureza solidária à obrigação de prestar alimentos quando os credores forem idosos, que por força da sua natureza especial prevalece sobre as disposições específicas do Código Civil.- O Estatuto do Idoso, cumprindo política pública (art. 3º), assegura celeridade no processo, impedindo intervenção de outros eventuais devedores de alimentos.- A solidariedade da obrigação alimentar devida ao idoso lhe garante a opção entre os prestadores (art. 12).Recurso especial não conhecido“. (REsp nº 775.565/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, DJ de 26/6/2006)

[6] Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores.

[7] TJ-CE; AC 0224123-38.2020.8.06.0001; DJCE 5/7/2022.

[8] Segundo Rolf Madaleno, o Estatuto permite “ao alimentando acionar qualquer um dos prestadores, indiferente à regra da proximidade de grau de parentesco do artigo 1.698 do Código Civil, e ao dispensá-lo de chamar os demais parentes obrigados pela prestação divisível, em necessário litisconsórcio passivo, conferiu efetividade processual à demanda alimentar do idoso, e concedeu maior mobilidade processual ao credor de alimentos da terceira idade” (MADALENO, Rolf. Direito de Família. 10ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 85).

[9] TJ-MG; APCV 0013172-81.2019.8.13.0106; DJEMG 26/11/2021.

[10] 1. Revelam-se distintas as pretensões decorrentes da obrigação alimentar e da reparação de danos por abandono afetivo, embora possam ser apreciadas de forma concomitante e aplicadas as devidas consequências legais e processuais, quais seja, a fixação ou não da obrigação alimentar e a indenização por traumas, frustrações e danos causados pela omissão de referência parental no atendimento da criança e do adolescente pelo abandono afetivo. Nesta perspectiva a obrigação alimentar tem por escopo o sustento para sobrevivência do ente familiar assim considerado pela relação parental existente em face do princípio constitucional da assistência integral, e mútua, entre ascendentes e descendentes, amparados essencialmente pela solidariedade familiar e, no caso concreto, cabíveis diante da comprovada situação de vulnerabilidade vivenciada pelo alimentado idoso, com renda insuficiente para o autossustento. O fundamento calcado no abandono afetivo aplica as regras da responsabilidade civil no âmbito das relações familiares e difere da obrigação de prestação de alimentos em regulação jurídica visando indenização mediante fundamento específico e autônomo com fundamento de descumprimento, pelos pais, do dever jurídico de exercer a parentalidade de maneira responsável. Inobstante haja pensamento jurisprudencial que invoque os dois institutos para apreciação conjunta não se há de considerar que os alimentos são desideratos de sustento futuro e o abandono afetivo busca reparação por fatos anteriores. Tais elementos cultuam a melhor interpretação judicial que, no caso presente, inspira exigência essencial de instrução e apreciação em primeiro grau. (TJ-PR; Rec 0029450-98.2022.8.16.0000; DJPR 23/8/2022).

[11] Súmula 596, STJ: “A obrigação alimentar dos avós tem natureza complementar e subsidiária, configurando-se apenas na impossibilidade total ou parcial de seu cumprimento pelos pais”.

[12] CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL POR ALIMENTOS. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR AVOENGA. CARÁTER COMPLEMENTAR E SUBSIDIÁRIO DA PRESTAÇÃO. EXISTÊNCIA DE MEIOS EXECUTIVOS E TÉCNICAS COERCITIVAS MAIS ADEQUADAS. INDICAÇÃO DE BEM IMÓVEL À PENHORA. OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DA MENOR ONEROSIDADE E DA MÁXIMA UTILIDADE DA EXECUÇÃO. DESNECESSIDADE DA MEDIDA COATIVA EXTREMA NA HIPÓTESE.1- O propósito do habeas corpus é definir se deve ser mantida a ordem de prisão civil dos avós, em virtude de dívida de natureza alimentar por eles contraída e que diz respeito às obrigações de custeio de mensalidades escolares e cursos extracurriculares dos netos.

2- A prestação de alimentos pelos avós possui natureza complementar e subsidiária, devendo ser fixada, em regra, apenas quando os genitores estiverem impossibilitados de prestá-los de forma suficiente. Precedentes.3- O fato de os avós assumirem espontaneamente o custeio da educação dos menores não significa que a execução na hipótese de inadimplemento deverá, obrigatoriamente, seguir o mesmo rito e as mesmas técnicas coercitivas que seriam observadas para a cobrança de dívida alimentar devida pelos pais, que são os responsáveis originários pelos alimentos necessários aos menores.4- Havendo meios executivos mais adequados e igualmente eficazes para a satisfação da dívida alimentar dos avós, é admissível a conversão da execução para o rito da penhora e da expropriação, que, a um só tempo, respeita os princípios da menor onerosidade e da máxima utilidade da execução, sobretudo diante dos riscos causados pelo encarceramento de pessoas idosas que, além disso, previamente indicaram bem imóvel à penhora para a satisfação da dívida.5- Ordem concedida, confirmando-se a liminar anteriormente deferida.

(HC nº 416.886/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 12/12/2017, DJe de 18/12/2017.)

[13] Avosidade e solidariedade: a (IR)razoabilidade da prisão civil do idoso devedor de alimentos. IN: Avosidade – Relação jurídica entre avós e netos – enfoque multidisciplinar. Coordenação Tânia da Silva Pereira (Et Al). Indaiatuba-SP: Editora Foco, 2021, p. 173.

Publicado em Conjur (https://www.conjur.com.br/2022-out-23/processo-familiar-obrigacao-alimentar-pessoa-idosa)